A situação inesperada, que já é tratada pelas autoridades de saúde como uma epidemia, ocorre num momento em que as hospitalizações e as mortes por covid-19 estão em baixa.
Entre os fatores que ajudam a entender esse cenário, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil destacam o relaxamento nas medidas restritivas contra o coronavírus (que, por tabela, ajudam a prevenir infecções pelo influenza, o causador da gripe), a baixa taxa de vacinação contra essa doença e a grande quantidade de cidadãos vulneráveis e sem imunidade contra esse patógeno.
Eles também destacam que a situação preocupa e é preciso tomar alguns cuidados para que a crise não transborde e atinja outras cidades brasileiras ao longo dos próximos meses.
Entenda a seguir o que está por trás dessa nova epidemia no Rio de Janeiro e o que pode ser feito para contê-la.
O cenário atual
O infectologista Alberto Chebabo ocupa uma posição estratégica para entender a situação sanitária carioca. Ele é diretor médico do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e também trabalha na Dasa, rede de laboratórios, hospitais e outros serviços privados de saúde.
O médico conta que, ao longo de 2020, o Sars-CoV-2 (o coronavírus causador da covid) reinou praticamente sozinho entre as infecções respiratórias que acometeram os brasileiros.
Com o avanço da vacinação e os demais cuidados preventivos, porém, houve uma mudança importante nessa disputa a partir do segundo semestre de 2021.
Patógenos que estavam praticamente sumidos, como o vírus sincicial respiratório, o bocavírus e o parainfluenza, voltaram a aparecer e a afetar especialmente a saúde das crianças, como apontado numa reportagem publicada pela BBC no início de novembro.
Mais recentemente, quem deu as caras foi o influenza: Chebabo diz que o primeiro caso de gripe identificado pela Dasa no Rio de Janeiro ocorreu em 13 de novembro.
A partir dali, o crescimento foi vertiginoso. “Na semana de 29 de novembro a 3 de dezembro, 90% das amostras analisadas pela empresa registaram a presença do influenza H3N2”, relata o infectologista.
De acordo com os últimos números divulgados pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, mais de 23 mil casos da doença já haviam sido detectados.
O último Boletim InfoGripe, publicado na quinta-feira (9/12) pela Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), também chama a atenção para essa nova epidemia.
De acordo com a análise, que leva em conta os registros de hospitalização por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), o aumento de infecções por influenza na cidade já começa a se refletir no número de internações na capital fluminense.
E há o risco de que o problema se espalhe para outros lugares, alerta o boletim.
“Em decorrência da grande relevância da capital fluminense na rede de mobilidade aérea nacional, tal cenário serve de alerta aos demais grandes centros urbanos e turísticos em função do risco de importação de casos de influenza”, escrevem os autores.
“Não é difícil que esse aumento inesperado no Rio de Janeiro se repita em outras cidades. É preciso que as prefeituras fiquem alertas”, concorda Chebabo.
O que explica esse cenário?
Tipicamente, os surtos e as epidemias de gripe costumam acontecer entre os meses de abril, maio, junho e julho, na virada entre outono e inverno.
Isso ocorre porque, na época de frio, as pessoas tendem a ficar mais próximas umas das outras e em lugares fechados, o que facilita a transmissão viral.
A situação atual do Rio de Janeiro, que se desenrola praticamente no início do verão, é inesperada. Mesmo assim, ela pode ser explicada por três fatores principais.
Tudo indica que o influenza H3N2 que transita pelas terras cariocas foi “importado” do Hemisfério Norte, região que está entrando agora na temporada de frio.
“Pelas informações que temos, a cepa de influenza que circula no Rio de Janeiro é a mesma que está na Europa e nos Estados Unidos. Possivelmente alguém se infectou lá e reintroduziu o vírus na cidade”, contextualiza Chebabo.
Mas para que o patógeno fosse bem-sucedido e se transformasse num problema maior por aqui, ele precisa de duas condições: baixa cobertura de vacinação contra a gripe e falta de adesão às medidas preventivas básicas.
E foi justamente isso o que ele encontrou: com o maior controle da covid-19 nos últimos meses, houve uma queda no uso de máscaras e no distanciamento social e um aumento na circulação pelas ruas e nas aglomerações. Esse cenário facilita a transmissão de vírus respiratórios, como é o caso do Sars-CoV-2 e também do influenza.
Para completar, a campanha de vacinação contra a gripe de 2021 ficou longe de atingir seus objetivos. De acordo com os cálculos do Ministério da Saúde, cerca de 78% do público-alvo (que inclui crianças, gestantes e idosos) tinha sido vacinado até setembro. O ideal é que esse número ultrapasse os 90%.
A procura estava tão baixa que, em julho, o governo federal anunciou que toda a população brasileira poderia ir aos postos de saúde para receber uma dose do imunizante.
Mais especificamente no Rio de Janeiro, pouco menos de 60% do público-alvo havia sido vacinado contra a gripe até novembro.
“A exemplo do que ocorre com a covid-19, a vacinação contra a gripe é importante especialmente para prevenir os casos mais graves e as complicações, que levam à hospitalização e aumentam o risco de morte”, explica o pesquisador em saúde pública Leonardo Bastos, da FioCruz.
Ou seja: há um enorme contingente de pessoas vulneráveis às formas mais graves da infecção, ainda mais porque o vírus influenza praticamente não circulou em 2020.
“Isso é particularmente sensível em crianças e adultos jovens, que não foram expostos ao influenza anteriormente, especialmente nas últimas temporadas de inverno”, diz Bastos.
O que fazer agora?
Com a epidemia de gripe instalada, a Prefeitura do Rio de Janeiro lançou mão de diversas ações para conter o problema. A primeira foi a criação de centros de atendimento e testagem para indivíduos com sintomas gripais. As autoridades cariocas já anunciaram cinco unidades dessas, que têm capacidade de atender mil pacientes por dia.
De acordo com um comunicado publicado no site da prefeitura, esse sistema de polos de atendimento “já havia sido adotado em 2009, durante um surto de gripe H1N1. Na ocasião, também foi registrado aumento na procura por atendimento nas unidades de saúde”.
Outra medida foi o reforço na vacinação, que esbarrou na falta de doses e ficou paralisada nos primeiros dias de dezembro.
A promessa é que a campanha seja retomada em breve, com a doação de cerca de 400 mil unidades do imunizante feito pelo Instituto Butantan, em São Paulo.
Outras 100 mil doses, que foram remanejadas de outros Estados pelo Ministério da Saúde, também estão a caminho da cidade.
A imunização contra a gripe está indicada para toda a população com mais de seis meses de vida. A dose, aliás, pode ser aplicada no mesmo dia da vacina contra a covid-19.
“Também é importante que as demais ações, como fazer a higienização das mãos, usar máscaras e evitar aglomeração, continuem a acontecer”, acrescenta Chebabo.
“Outro comportamento que precisamos adotar de uma vez por todas é o de ficarmos em casa, em isolamento, quando estamos com sintomas de gripe, como febre, tosse, espirros e dor no corpo. Não se deve trabalhar ou ir para a escola com esses incômodos. Assim, reduzimos o risco de transmissão do vírus para outras pessoas”, chama a atenção o infectologista.
E, inclusive, esse pacote de cuidados, que inclui todas as medidas preventivas e a vacinação, não deve se limitar ao Rio de Janeiro.
“Falamos de uma cidade turística e com grande circulação de pessoas de outras cidades e Estados do país. A epidemia pode sim se espalhar para outros lugares”, reforça Bastos.
“Não adianta esperar estourar [a epidemia] no seu Estado para só então reforçar a campanha de vacinação contra a gripe e os cuidados necessários. Ainda mais neste período do ano em que temos muitas aglomerações em centros comerciais, mercados públicos e festas”, comentou o pesquisador Marcelo Gomes, coordenador do Boletim InfoGripe da FioCruz, numa série de postagens no Twitter.
“Em função da grande circulação diária de passageiros entre os principais centros urbanos do país, especialmente a partir de Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília, doenças infecciosas, e particularmente vírus respiratórios, têm uma facilidade muito grande de pular de um local para outro rapidamente”, acrescentou.
Embora seja menos agressiva que a covid-19, a gripe também está relacionada com hospitalizações e mortes.
A Organização Mundial da Saúde estima que, no planeta, até 650 mil pessoas morram todos os anos de complicações respiratórias relacionadas ao vírus influenza.