De agora em diante, os Estados Unidos reconhecerão apenas “dois gêneros”. O aviso, feito por Donald Trump em seu discurso de posse, marca um ponto controverso de sua agenda comportamental. “Nesta semana, acabarei com a política governamental de tentar aplicar a raça e o gênero em cada aspecto das vidas pública e privada”, declarou. “A partir de hoje, a política do governo dos EUA é a de que existem apenas dois gêneros, masculino e feminino”, ressaltou, arrancando aplausos dos convidados reunidos sob a Rotunda do Capitólio. De acordo com ele, a sociedade norte-americana será baseada no casamento.
Em 23 de dezembro passado, Trump tinha antecipado a decisão durante evento para jovens conservadores, na cidade de Phoenix (Arizona). Na ocasião, ele prometeu pôr fim à “loucura” dos transgêneros. “Assinarei ordens executivas para acabar com a mutilação sexual infantil; e tirar os transexuais das Forças Armadas e das nossas escolas primárias e de ensino médio”, declarou. O site POLITICO divulgou que os departamentos de Estado e de Segurança Interna, além de agências federais, receberão ordens para retirar de passaportes, vistos e outros documentos de esfera federal as opções “não-binário” ou “outras” de documentos federais, incluindo passaportes e vistos.
Em seu governo, Trump pretende pôr fim aos esforços relacionados à “engenharia social de raça e gênero em todos os aspectos da vida pública e privada”. Ativista transgênero e líder da Wave Women, organização que presta assistência a pessoas trans não brancas, em Rochester (Nova York), Javannah J. Davis disse ao Correio que a decisão de Trump baseada apenas no sexo biológico representa uma mudança significativa na forma com que o gênero é legalmente reconhecido nos EUA. “Isso reflete uma compreensão binária do gênero e pode ter implicações nas políticas federais e nos programas e proteções legais para pessoas transgênero e indivíduos não-binários.”
Direitos ameaçados – Javannah acredita que a medida adotada pelo novo governo poderá limitar o reconhecimento e os direitos daquelas pessoas cujas identidades estão fora do padrão binário. Também prevê impactos na restrição a serviços de afirmação de gêneros na cobertura da saúde ou em seguros. “As pessoas poderão enfrentar desafios na obtenção ou atualização de passaportes, licenças e outros documentos. A decisão de Trump poderá aumentar o estigma, a discriminação e a marginalização de comunidades transgênero e não binárias”, observou.
Brad Sears — diretor executivo do Williams Institute, que conduz pesquisas independentes sobre orientação e identidade de gênero, e professor da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia (Ucla) — explicou ao Correio que a ordem executiva de Trump “entra em conflito com a biologia básica e a realidade atual”. “Sabemos há séculos que o sexo biológico é mais complicado do que um binário simples. Hoje, há mais de 1,6 milhão de pessoas transgênero nos Estados Unidos. Além disso, há centenas de milhares de pessoas que são não binárias e intersexuais. A ordem executiva pode e aumentará as barreiras que elas enfrentam, mas não pode apagar sua existência ou seu futuro”, alertou.
Para Sears, a decisão de Trump fará com que as pessoas classificadas com TGI — transgênero, de gênero variante e intersexo — percam o acesso a atendimento médico e a proteções federais nas escolas e no trabalho. “Também haverá impactos negativos à saúde mental em uma comunidade considerada vulnerável”, previu.
“Líderes, organizações e aliados do TGI trabalharão para fazer dos próximos quatro anos um quebra-molas, e não um obstáculo no progresso para a igualdade trans completa. Haverá protestos e litígios desafiando a ordem executiva. As comunidades LGBTQ nos Estados Unidos têm uma longa história de compensar a inação do governo, inclusive durante a epidemia de Aids. Cuidamos dos nossos, mesmo que tenhamos que construir instituições e serviços para isso. Essa resiliência e essa desenvoltura continuarão durante os próximos quatro anos.”